Embora gostemos de imaginar que não, todos vivemos através das nossas crenças. Claro que ler isso não será e não é suficiente para que a percepção desse fato lhe venha, ou, dizendo em outras palavras, para que lhe caía a ficha de que você é um crente. Sim, eu sei, é difícil, muito difícil de admitir, principalmente se você baseou toda a sua concepção de vida numa ideia "lógica, racional e cientificamente comprovada". Ou seja, se você lá nos seus primeiros passos refutou a concepção de vida que lhe era ensinada. Mas está é a história da Flávia.
A Flávia, muito certa de suas convicções, questionava os conceitos religiosos e morais do seu meio. Ou seja, ela reagiu aquilo imitando outros conceitos. Embora agrade a vaidade dela, não era nada novo, era apenas imitação. Como ainda continua sendo, mesmo que, repito, gostemos de pensar o oposto.
O fato é que não fazemos nada de novo. E a Flávia, como representante da humanidade, trocou uma crença pela outra. Descartou a crença cristã que lhe era ensinada pela família e declarou que era ateia. Fácil não?, uns declaram que acreditam em Deus, outros declaram que não acreditam. Mas perceba a sutileza dessa palavra: acreditar. No dicionário acreditar significa crer, dar crédito, confiar. É sempre um ato relacionado à um objeto, algo que não está, algo que não é um fato, é apenas uma ideia, um ideal. E assim fomos caminhando, e, acreditem (ou não, se já pegaram o sentido da coisa) a Flávia era uma boa pregadora.
Pregava na sala de aula, pregava com os amigos, pregava, principalmente, na família. E que momentos deliciosos de falação e exaltação e desconforto. Os temas foram variando, mas a pregação não tinha fim. A Flávia era uma crente fiel. Fiel ao ato de crer, não fiel à uma crença especificamente. E claro, como não poderia deixar de ser, fiel àquilo que era o tema da moda. Teve o ateísmo, o rock, o comunismo, a liberdade sexual, as drogas, a injustiça social, o feminismo, as questões de gênero, a sustentabilidade, a alimentação, os orgânicos, a ecovila. Em todas ela acreditava que tinha razão, ou seja ela acreditava naquilo que lia, naquilo que lhe era dito desde que "confiasse" na fonte. Observe novamente a questão da crença.
Mas o que acontece quando acreditamos em algo? Temos uma ideia de alguma coisa, um conceito, e esse conceito, essa ideia se opõe aquilo que é, ao fato. E o que acontece com uma vida vivida através de ideias e ideais? Você com a sua ideia de um lado, a Flávia com a ideia dela de outro. Há quantas centenas de anos estamos representando essa mesma peça, esse mesmo conflito. No entanto, nunca aprendemos. Vivemos através de uma ideia de como deveria ser a nossa vida, a nossa casa, o nosso dia, o nosso marido, de como o porteiro deveria falar conosco, de como a cidade deveria ser mais limpa, ou mais pacífica, ou mais justa, ou mais isso, ou mais aquilo. Mas nunca nos atentamos aos fatos. A vida como ela é, com tudo aquilo que se opõe às nossas ideias, as nossas crenças, aos nossos desejos, aos nossos prazeres. Vivemos através de uma ideia, portanto, não estamos vivos. A ideia, o ideal é sempre do passado. Não é possível ter uma ideia nova, ela já nasce morta. Mas a vida, o fato, aquilo que é, está sempre vivo.
Certa vez a Flávia estava com um grupo de pessoas, era noite, estávamos no terraço de uma casa, tínhamos um céu à vista, montanhas, a Baía de Guanabara, um bando de pássaros fazia um redemoinho no ar. Era a noite numa grande cidade, numa dessas entre muitas que nós mesmos construímos e agora tratamos de rechaçar. E éramos humanos, há centenas de anos habitando esse pequenino planeta. Havíamos nos reunido para tratar de questões ambientais, do uso de agrotóxicos, da produção e distribuição de alimentos orgânicos. Ninguém reparou no céu, ninguém viu a beleza das luzes das casas, ninguém se admirou com a maravilha tecnológica que é um avião fazendo uma curva preparando-se para pousar no Santos Dumont. Estamos todos muito preocupados com as nossas ideias, os nossos desejos (sejam eles socialmente valorizados ou não) para estarmos presentes na vida, na vida como ela é.
Lindo texto!
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